Eu ficava brincando com o tal binóculo, ali já monóculo, na loja que a gente tinha na frente de casa. Era bom a loja pra minha mãe porque ela tinha uma desculpa pra ficar lá na frente e fiscalizar a vizinhança. Todos os vizinhos odiavam ela e queriam tirar proveito de nós. Jogar lixo aqui. Roubar nossa energia. Sei lá mais o que. Ainda querem, aparentemente, porque até hoje ela vigia. Se tu desse 500 mil reais pra minha mãe, ela ia morar num bunker bem longe daqui, tipo aquelas mansão de traficante paraguaio no meio do mato em Teófilo Otoni — MG. Sei porque meu pai já foi ni uma por acidente. O guardinha da cidade que tirou ele de lá. Ou talvez não, toda história interessante que meu pai conta é mentira. Tudo o que ele fala de mim é mentira.
Era um binóculo-monóculo danado de ruim. Brinde de revista, juntei os 772 selos que vinham nas edições. Não dava pra ver muito de longe, mas era o mais próximo de um telescópio que eu teria a vida toda. Aí eu ficava olhando a rua, as árvore, as coisa tudo de longe.
Uma tarde minha mãe falou “olha ali pra mamãe o que tá escrito naquela placa”. Um comércio novo que tava abrindo na rua, não lembro o que era. Falei pra ela pegar o monóculo e olhar. “chama atenção um adulto assim na cara dura usando binóculo no meio da rua, olha pra mamãe”. Nem lembro mais o que era. Ela foi anotar no caderninho onde ela anotava todos os ataques e ameaças indiretas e codificadas que sofríamos dos vizinhos. Uma vez catei esse caderno na frente dela, de brincadeira, e ela correu atrás de mim pra eu não ler. Foi a única vez que vi ela correr na vida. Mas eu li assim mesmo, escondido, umas vezes. A letra horrível dela já era um código em si, parecia um livro de feitiçaria numa língua morta. Mas eu aprendi a língua e li bastante. Um diário de desgraças imaginárias. Minha mãe teve twitter antes de vocês.
Chama atenção um adulto assim na cara dura falando putaria pra mulheres no meio da rua às 6h30 da manhã. Era por isso que meu pai me levava junto. Pra escola. às vezes, quando ele tava na região e não tinha que entrar cedo no emprego em que estivesse naquele mês. Eu do lado com a mochilinha, fantasiando nos pensamentos. Passasse qualquer gostosa, ele chegava no ouvido dela e falava uns “oi…” com voz de locutor das 22h. às vezes tinha mais que “oi…”. Eu não prestava atenção, só sabia que era bobagem. Não falava nada, igual nunca falei do caderno.
Se eu não tivesse sempre fantasiando nos meus pensamentos, talvez seria uma criança matraca igual minhas primas. Meu pai queria que eu fosse como elas. Ele sempre falava coisas boas delas, e essas coisas eram verdade - inclusive muitas vezes eu tinha estado junto e vi. Uma dessas primas, com 4 anos, falou que a mãe dela era gostosa igual a Carla Perez (denúncia de idade aqui). E se eu falasse pra então esposa do meu pai “o pai sai na rua comigo pra falar bobagem no ouvido das mulher e não apanhar porque tá com criança”. Me pergunto qual mentira ele ia meter pra se safar.
Não sei se ele ainda faz isso. Nunca mais andou com criança, eu fui a última que ele fez. Também acho que ele tá velho demais pra arriscar levar uma bolsada nos dentes. Ou talvez seja isso mesmo, acha que ninguém vai bater nele porque ele é velho. Ele não é velho tipo mestre Kame, que apanha da Bulma mesmo assim. é velho galã. Terror dos barzinho. Um homem bonito que acha que por ser bonito e homem pode tudo. Espero que ele não faça mais isso.
Tal como os assédios do pai, o caderno da mãe, eu não vi mais. Quando tive depressão da primeira vez, no auge do pop punk, eu tinha um caderno de desabafo, aqueles bem ruim com capa mole que o governo dava, e eu escrevia tudo codificado em inglês - usando todas as 8 frases que eu sabia de músicas do Good Charlotte. Muitos anos depois, reencontrei o caderno e rasguei tudo. Foi pro lixo. Tem coisa que eu quero lembrar só na cabeça, em tempo passado. Tipo a existência do Green Day.